Todos somos pedestres. Alguns de nós durante poucos instantes do dia, outros por horas. Por opção ou por necessidade, 22% da população brasileira se desloca exclusivamente a pé até seus destinos diários. Esse número poderia ser ainda maior se as condições para a prática fossem mais favoráveis nas nossas cidades. Boas iniciativas devem, no entanto, ser contadas e replicadas. São Paulo, Curitiba e Joinville merecem ser lembradas pela adoção de políticas que incentivam o caminhar.
Em São Paulo, reduções de velocidade e ruas remodeladas
Mudanças na forma com que a cidade promove a mobilidade são determinantes para a segurança dos cidadãos. Uma das medidas importantes para isso, que pode ser vista em prática em São Paulo, é a redução do limite de velocidade nas vias urbanas. A legislação brasileira ainda permite que veículos motorizados trafeguem em uma velocidade alta para centros urbanos, pensada apenas para eles e não para os outros ocupantes dos espaços públicos. No entanto, a tomada de decisão para mudar essa realidade está nas mãos de cada município.
A capital paulista apresentou uma redução de 24,5% no número de mortes de pedestres em um ano. O levantamento, realizado pela Companhia de Engenharia de Tráfego (CET) da cidade, mostra dados da comparação entre janeiro e dezembro de 2014 com o mesmo período de 2015. Esse número é um reflexo da implantação de novos limites de velocidades em importantes vias. Desde julho do ano passado, nas pistas expressas de ambas as marginais Tietê e Pinheiros, o limite de velocidade é de 70km/h no caso de veículos leves e 60km/h para veículos pesados. Em pistas de acesso local das marginais o limite é de 50km/h para todos os tipos de veículos. Diversas outras avenidas também tiveram os limites reduzidos.
“A redução de velocidade é uma política chave pra a caminhabilidade porque incentiva que todos os usuários da via convivam melhor, dá mais valor à vida das pessoas. São Paulo tem sido líder nesse assunto no país, o que é ótimo, já que é uma das mais importantes cidades do Brasil e da América Latina e serve de exemplo para todas as outras”, ressalta Paula Santos Rocha, Coordenadora de Mobilidade Urbana e Acessibilidade doWRI Brasil Cidades Sustentáveis.
Com a aprovação de mais de 50% da população da cidade, São Paulo segue com o Programa de Proteção à Vida (PPV), conjunto de medidas criadas para melhorar a segurança viária. A redução de velocidades também é aplicada através do projeto Áreas 40. A iniciativa, que começou a ser implantada em outubro de 2013, também busca aumentar a segurança de pedestres e ciclistas, os usuários mais vulneráveis no trânsito. Segundo a CET, todas as regiões da cidade já possuem Áreas 40, que somam 12 implantações.
Velocidades mais baixas resultam em mais tempo para condutores, pedestres e ciclistas verem uns os outros, o que reduz a possibilidade de atropelamentos e colisões. O estudo “Impactos da Redução dos Limites de Velocidade em Áreas Urbanas”, desenvolvido pelo WRI Brasil Cidades Sustentáveis, traz dados que respaldam a decisão da prefeitura paulista. A publicação mostra como uma redução de 5% na velocidade média dos veículos pode resultar em 30% menos acidentes fatais.
No entanto, não basta mudar apenas a sinalização das vias. O desenho delas influencia diretamente o comportamento dos motoristas que circulam no local. Ruas devem ser literalmente remodeladas para proteger os pedestres e ciclistas através de projetos amplos. “No início do projeto das Áreas 40, a prefeitura de São Paulo reduziu as velocidades, colocou placas, mas apenas isso não basta. A cidade agora está investindo na mudança do desenho urbano”, conta Paula. O bairro de São Miguel, na região leste da cidade, será o primeiro a receber medidas de redesenho das vias dentro do projeto das Áreas 40. O projeto é uma parceria entre a prefeitura da cidade, a Iniciativa para a Segurança Viária Global da Bloomberg Philanthropies, o WRI Brasil Cidades Sustentáveis, o ITDP Brasil e a Nacto.
O Concurso Áreas 40, também organizado pelo WRI Brasil Cidades Sustentáveis, em parceria com a Bloomberg Philanthropies, incentivou arquitetos e engenheiros a elaborar projetos de requalificação em três regiões da capital paulista: Brás, uma região mais comercial, com predominância do fluxo de pedestres; Lapa, de característica mais mista, com espaços residenciais e comerciais, e com grande fluxo para integração modal; e Santana, também de uso misto, com grande fluxo de pessoas jovens. O concurso, segundo Paula, foi uma importante ferramenta de incentivo para começar a pensar de forma ampla o aspecto de redesenho de vias em pontos de maior fluxo de pedestres.
Em Joinville, a caminhabilidade é um compromisso definido no Plano de Mobilidade
Joinville, o município mais populoso de Santa Catarina, é conhecido desde a década de 1970 como a “Cidade das Bicicletas”. Na época, 30% dos deslocamentos diários eram realizados por bicicleta, número que hoje é de apenas 11,14%. Os deslocamentos a pé correspondem a 23%. A meta do Plano de Mobilidade da cidade é manter os deslocamentos a pé acima de 20% e ampliar para 20% aqueles feitos por bicicletas até 2025.
Recentemente, a cidade catarinense assinou o decreto que institui o Plano Diretor de Transporte Ativo (PDTA), que engloba o Plano Diretor Cicloviário e o Plano Diretor Caminhabilidade. O documento, elaborado pelo Instituto de Pesquisa e Planejamento para o Desenvolvimento Sustentável de Joinville (IPPUJ), toma como referência o Manual de Desenvolvimento Urbano Orientado ao Transporte Sustentável (DOTS), do WRI Brasil Cidades Sustentáveis, principalmente no desafio de mapear centralidades. O DOTS é um modelo de planejamento e desenho urbano voltado ao transporte público, que constrói bairros compactos e de alta densidade que favorecem a integração de serviços e espaços públicos.
“O foco do Plano de Joinville é trabalhar nos eixos de transporte coletivo. Ao redor das estações, foram mapeados pontos de interesse, como hospitais, escolas e parques, e traçadas rotas acessíveis de conexões desses locais. As calçadas dessas rotas receberão maior atenção da prefeitura”, explica Paula. Além dos eixos de transporte, a cidade de mais de 500 mil habitantes elegeu outros pontos importantes de centralidades entre as prioridades.
As centralidades de bairros, como chama o Plano, foram definidas como todas as quadras dentro de um raio de 500 metros ou percursos dentro do limite de 675 metros que concentram a maior quantidade de oferta de serviços, comércios e equipamentos públicos da localidade. Também foram estabelecidas as “Rotas Seguras”, que são todas as calçadas das quadras de unidades de ensino e de saúde no município até o acesso aos primeiros pontos de ônibus utilizados pelos usuários destes equipamentos públicos.
O Plano entende que a missão de migrar de uma cultura voltada aos automóveis para uma de “liberdade e apropriação da cidade através do caminhar” é desafiadora. Portanto, determina como metas estabelecer parâmetros de qualidade dos espaços de caminhada. Os objetivos específicos do PDTA preveem estabelecer métodos e critérios de avaliação quantitativa e qualitativa de calçadas e vias cicláveis, estabelecer os padrões de infraestrutura e sinalização, incluindo critérios de segurança viária que deverão ser considerados em legislações complementares, e propor a rede urbana de caminhabilidade e cicloviária do município.
Em Curitiba, calçadas novas, repensadas e bem iluminadas
Historicamente, Curitiba é referência em mobilidade no Brasil e no mundo. Nas palavras do jornal britânicoThe Guardian, ideias radicais tornaram Curitiba a “capital verde brasileira”. A reportagem cita as medidas tomadas pelo ex-prefeito Jaime Lerner, que teriam tornado a cidade em um modelo de planejamento urbano sustentável. Pioneira do sistema BRT (Bus Rapid Transit), a capital paranaense também adota diretrizes de DOTS como qualificação dos espaços públicos e racionalização do uso do automóvel, entre outros princípios.
“Curitiba construiu um eixo estruturante para que as pessoas morassem mais perto do transporte coletivo e não precisassem usar o carro”, explica Paula. “Os prédios mais próximos a esse eixo são mais altos, para mais pessoas morarem na região. O ideal é que ali as pessoas possam acessar todos os serviços necessários a pé ou de bicicleta.”
O Plano Estratégico de Calçadas de Curitiba, lançado em 2014, foi elaborado para garantir maior acessibilidade e segurança aos pedestres, assim como promover a integração com o Plano Cicloviário da cidade. A iniciativa coloca como meta a revitalização de 119 quilômetros de calçadas e a implantação de 115 quilômetros de novas calçadas. O plano prevê ainda a implantação de calçadões em todas as administrações regionais da cidade e a mudança na legislação que trata do assunto. A iluminação pública também é contemplada com os projetos “Caminhos de Luz” e “Rota Segura à Escola”, que melhoram as condições de segurança durante o deslocamento das crianças a caminho da escola.
Curitiba reduziu 17,5% das mortes por acidentes de 2014 para 2015. Nos últimos cinco anos, a queda chega a 40%. O objetivo da cidade é cumprir a meta estabelecida pela Década de Segurança Viária da ONU, de redução de 50% nas mortes no trânsito entre 2010 e 2020. “Fazer infraestruturas dedicadas é importante para dar visibilidade para o pedestre, mas tem que existir uma visão mais ampla para realmente incentivar o pedestre e colocar ele em primeiro lugar. Não adianta só fazer espaços isolados. É preciso planejamento, reduzir velocidades e ligar pontos de interesse”, exalta Paula.
Caminhar é da natureza do ser humano, é a prática mais natural e econômica de deslocamento. Se é assim para as pessoas, as cidades devem contemplar isso. Usar apenas o próprio corpo para ir de um lugar ao outro é ser livre, é não depender de condições de trânsito, é sentir os espaços públicos. Quanto mais pessoas caminham, melhor se tornam as caminhadas e mais ações positivas aos pedestres, como as já praticadas por São Paulo, Curitiba, Joinville e tantas outras cidades ao redor do mundo, são disseminadas.
Este artigo foi originalmente publicado no The CityFix Brasil com o mesmo título em julho de 2016.